Memória - Carlos Drummond de Andrade


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

                      Carlos Drummond de Andrade

Mudam-se os tempos - Luís de Camões


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, enfim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.

(Luís de Camões)


Promessas - Epitácio Mendes Silva


Promessas, guerras, conflitos,
 fazem a hora da existência 
 e a certeza é uma só:
 o amanhã será sombrio! 

 Promessa que não se cumpre
 vai matando a esperança 
 e a guerra que busca a paz
 traz a insegurança da paz.

 Felizes os loucos e inocentes 
 que vivem das fantasias
 e que das promessas não conhecem
 o lado das traições. 

Epitácio Mendes Silva

Se eu me precipitasse — Paulo de Toledo


se eu me precipitasse
em um precipício
e esse fosse a princípio
uma boca que falasse

e essa decidisse
pôr fim à queda e à sua falácia
e predissesse
qual um vate que musas invocasse

meu destino
e o mais que me coubesse
eu principiaria a rir
como se risse
fosse o passe de mágica
que transfigurasse
o que parecia inevitavelmente trágico
na mais despretensiosa tolice

Paulo de Toledo


Amor — Álvares de Azevedo


Amemos! quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!

Quero em teus lábios beber
Os teus amores do céu!
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d'esperança!
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,
Minh'alma, meu coração...
Que noite! que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

Álvares de Azevedo



Um desejo - Gonçalves Ribeiro


O homem cansado,
sentado à mesa,
sozinho em seu mundo,
faz distraidamente um barquinho de papel.

E o barquinho vai crescendo, crescendo
até transformar-se num soberbo navio.
O homem embarca apressado
e o navio parte vagarosamente,
deixando o tédio sobre a mesa.

E o homem tem agora
uma expressão aventureira.
Suas mãos transformaram-se em mares
para a viagem impossível
do barquinho de papel.


(Gonçalves Ribeiro)



Mundo criança — Gonçalves Ribeiro

Aos olhos da criança,
o mundo parece
um brinquedo mágico.
Promessa de alegria,
certeza de prazer.

Magia que está nos olhos
que conhecem
o segredo do sonho.
Olhos que acreditam,
que confiam,
que esperam.

Ah! se o mundo se transformasse
no mundo que vive dentro
dos olhos da criança!


Gonçalves Ribeiro




A efêmera eternidade do sonho — Fagundes Varela


Uma triste cabeça de mármore, rolando
pela estreita ladeira da mansão em ruína,
imobiliza-se entre a relva silenciosa
do abandono.

Na expressão de pedra, os olhos fitam
o escombros que se iluminam
com o esplendor da manhã.
Resto de estátua, resto de sonho...

Olhos que parecem surpresos
diante da ruína do solar
e diante da própria ruína...
E traduzem o engano
das mãos do artista
que pensou gravar na pedra
a eternidade do sonho.


Fagundes Varela



Sextilhas - Fagundes Varela


Amo o cantor solitário
Que chora no campanário
Do mosteiro abandonado,
E  a trepadeira espinhosa
Que se abraça caprichosa
À forca do condenado.

Amo os noturnos lampírios
Que giram, errantes círios,
Sobre o chão dos cemitérios,
E ao clarão de tredas luzes
Fazem destacar as cruzes
De seu fundo de mistérios.

Amo as tímidas aranhas
Que, lacerando as entranhas,
Fabricam dourados fios,
E com seus leves tecidos
Dos tugúrios esquecidos
Cobrem os muros sombrios.

Amo a lagarta que dorme,
Nojenta, lânguida, informe,
Por entre as ervas rasteiras,
E as rãs que os pauis habitam,
E os moluscos que palpitam
Sob as vagas altaneiras!

Amo-os, porque todo mundo
Lhes volta um ódio profundo,
Despreza-os sem compaixão!
Porque todos desconhecem
As dores que eles padecem
No meio da criação!

(Fagundes Varela)

Surpresa - Fagundes Varela


Chegou a bela estação
Em que rebentam as flores,
Também no meu coração
Rebentam novos ardores.

Busquei minha caprichosa
Na sala, alcova e cozinha:
Foi colher algum rosa
Talvez em lembrança minha.

▬ Pois bem, falei eu comigo,
Surpresas quiseste, amor?
Vou mostrar como consigo
Trazer a mais linda flor!



Corro, corro a largos passos,

Busco em vão um bogari!...
Mas ela voa a meus braços
E diz alegre: "eis-me aqui"!


(Fagundes Varela)



Novamente - Gonçalves Ribeiro


Ah! esse vento frio de outono,
que desengana as folhas das árvore...
Folhas que se amesquinham
no desprezo das calçadas...

A árvore vai ficar só.
Vai ficar só novamente
na solidão do abandono.
Porém, a vida persiste
dentro da morte ilusória.
E novamente
a árvore sonhará folhas
para que não se eternize
a aparência da morte.

No outono de esperanças,
a alma também se desfolha,
e parece morta.
Porém somente repousa
se a seiva dos sonhos
permanece viva
sob a esterilidade da descrença.


(Gonçalves Ribeiro)



Meu anjo - Álvares de Azevedo


Meu anjo tem o encanto, a maravilha,
Da espontânea canção dos passarinhos;
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pêlo sedoso dos arminhos.

Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto.
É leve a criatura vaporosa
Como a froixa fumaça de um charuto.

Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.

Como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso.
Dá morte num desdém, num beijo vida,
E celestes desmaios num sorriso!

Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!

(Álvares de Azevedo)

Anímico - Bruna Lombardi


Nossa história está escrita
dentro de cada célula
só não sabemos lê-la
ainda

dentro de nós existe
a resposta que buscamos
só que não a procuramos
bem

o nosso lado mais sábio
ainda se esconde da gente
e vamos nascer novamente
até saber


           (Bruna Lombardi)

Dispersão - Mário de Sá Carneiro


Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto 
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus, 
Mas fechou-as saciada 
Ao ver que ganhava os céus.

 Como se chora um amante,
 Assim me choro a mim mesmo:
 Eu fui amante inconstante 
 Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro 
Nem as linhas que protejo: 
Se me olho a um espelho, erro - 
Não me acho no que projeto. 

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada! 
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim. 

Não perdi a minha alma, 
Fiquei com ela, perdida. 
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo 
Uma gentil companheira 
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo 

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido 
Que vem na tarde doirada. 

(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte - 
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte, 
Numa grande capital. 

Vejo o meu último dia 
Pintado em rolos de fumo, 
E todo azul-de-agonia 
Em sombra e além me sumo. 

Ternura feita saudade, 
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade 
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas 
Que eram feitas pra se dar... 
Ninguém mas quis apertar... 
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal... 
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo; 
Eu fui alguém que passou. 
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal. 

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida 
Eu sigo-a, mas permaneço...

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba.


(Mário de Sá Carneiro)


Os dois lados — Murilo Mendes


Deste lado tem meu corpo
tem o sonho
tem a minha namorada na janela
tem as ruas gritando de luzes e momentos
tem meu amor tão lento
tem o mundo batendo na minha memória 
tem o caminho pro trabalho.

Do outro lado tem outras vidas vivendo
da minha vida
tem pensamentos sérios me esperando na
sala de visitas
tem minha noiva definitiva me esperando
com flores na mão,
tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.


(Murilo Mendes)




Dialética — Vinícius de Moraes


É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...


(Vinícius de Moraes)


Soneto da separação - Vinícius de Moraes


De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


(Vinícius de Moraes)

Soneto a quatro mãos - Vinícius de Moraes


Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.


(Vinícius de Moraes )



Nós e natureza - Epitácio Mendes Silva


Cores de todas as manhãs,
manhãs de todas as cores.
Dia de todas as luzes,
luzes de todos os dias.
Noite de todas as luzes,
luzes de todas as noites. 
Gotas de orvalho das flores 
e flores com gotas de orvalho.
Pássaros que os dias festejam 
e dias que festejam os pássaros. 
Céu de todos os azuis
e azuis de todos os céus. 
Cristalinas águas das fontes 
e fontes de águas cristalinas. 
Mundo de todos os sons 
e sons de todos os mundos. 
Dizei-me oh, coisas divinais:
por que em tudo isso me reflito
e tudo me faz pensar em ti ?...


(Epitácio Mendes Silva)



Carolina — Machado de Assis


Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.


(Machado de Assis)


Deserto - Paulo de Toledo


minha sombra caminha
adiante de mim

sigo-a sequioso
com meu séquito de sonhos

lá atrás o sol
ao traduzir-me desola-se


(Paulo de Toledo)


Pantera - Carlos Newton Júnior


Jamais a vi verdadeira
— o hálito quente e o frio olhar —
para além das rijas barras
que mundo nenhum retém:

encontrei-a nas palavras
precisas, que são ferro e pedra,
sangue vivo, força oculta,
veludo quase matéria.

E eram tantas as panteras
nas diversas traduções
do mesmíssimo poema.

Em todas, o vulto negro
num silêncio ditirambo
com seus coturnos de seda.


(Carlos Newton Júnior)



Névoas - Fagundes Varela


Nas horas tardias que a noite desmaia
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz,

Eu vi entre os flocos de névoas imensas,
Que em grutas extensas se elevam no ar,
Um corpo de fada — sereno, dormindo,
Tranqüila sorrindo num brando sonhar.

Na forma de neve — puríssima e nua —
Um raio da lua de manso batia,
E assim reclinada no túrbido leito
Seu pálido peito de amores tremia.

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,
Das verdes, cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste tão bela dormindo,
E dormes, sorrindo, das nuvens no véu?

O orvalho das noites congela-te a fronte,
As orlas do monte se escondem nas brumas,
E queda repousas num mar de neblina,
Qual pérola fina no leito de espumas!

Nas nuas espáduas, dos astros dormentes
— Tão frio — não sentes o pranto filtrar?
E as asas, de prata do gênio das noites
Em tíbios açoites a trança agitar?

Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!...
Os astros sem alma se cansam de olhar-te,
Nem podem amar-te, nem dizem paixão!

E as auras passavam — e as névoas tremiam
— E os gênios corriam — no espaço a cantar,
Mas ela dormia tão pura e divina
Qual pálida ondina nas águas do mar!

Imagem formosa das nuvens da Ilíria,
— Brilhante Valquíria — das brumas do Norte,
Não ouves ao menos do bardo os clamores,
Envolto em vapores — mais fria que a morte!

Oh! vem; vem, minh'alma! teu rosto gelado,
Teu seio molhado de orvalho brilhante,
Eu quero aquecê-los no peito incendido,
— Contar-te ao ouvido paixão delirante!...

Assim eu clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o gemido da onda na praia,
Na hora em que fogem as névoas sombrias
– Nas horas tardias que a noite desmaia.

E as brisas da aurora ligeiras corriam.
No leito batiam da fada divina...
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem,
E a pálida imagem desfez-se em — neblina!


(Fagundes Varela)

Ápice - Mário de Sá-Carneiro


O raio do sol da tarde  
Que uma janela perdida
Refletiu
Num instante indiferente — 
Arde, 
Numa lembrança esvaída, 
À minha memória de hoje 
Subitamente...

Seu efêmero arrepio 
Ziguezagueia, ondula, foge, 
Pela minha retentiva...
— E não poder adivinhar
Porque mistério se me evoca
Esta ideia fugitiva,
Tão débil que mal me toca!...

— Ah, não sei porquê, mas certamente 
Aquele raio cadente 
Alguma coisa foi na minha sorte 
Que a sua projeção atravessou... 

Tanto segredo no destino de uma vida...

É como a ideia de Norte,
Preconcebida, 
Que sempre me acompanhou...


(Mário de Sá-Carneiro )

Horas vivas - Machado de Assis


Noite: abrem-se as flores . . .
Que esplendores!
Cíntia sonha seus amores
Pelo céu.
Tênues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas,
Como um véu.

Mãos em mãos travadas,
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabelos,
Em novelos,
Puros, louros, belos,
A voar.

— "Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Ilusões!

— "Quantas, quantas vidas
Vão perdidas,
Pombas mal feridas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos,
Vêm os desenganos
Afinal.

— "Dorme: se os pesares
Repousares,
Vês? — por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos — horas vivas
De dormir. —"


(Machado de Assis)

Menina e moça - Machado de Assis


Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando-se talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!


(Machado de Assis)

Por Mim - Álvares de Azevedo


Teus negros olhos uma vez fitando 
Senti que luz mais branda os acendia, 
Pálida de langor, eu vi, te olhando, 
Mulher do meu amor, meu serafim, 
Esse amor que em teus olhos refletia... 
Talvez! - era por mim? 

Pendeste, suspirando, a face pura, 
Morreu nos lábios teus um ai perdido... 
Tão ébrio de paixão e de ventura! 
Mulher de meu amor, meu serafim, 
Por quem era o suspiro amortecido? 
Suspiravas por mim?...

Mas... eu sei!... ai de mim? Eu vi na dança 
Um olhar que em teus olhos se fitava... 
Ouvi outro suspiro... d´esperança! 
Mulher do meu amor, meu serafim, 
Teu olhar, teu suspiro que matava... 
Oh! não eram por mim.


(Álvares de Azevedo)

O fogo que na branda cera ardia - Luís de Camões


O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
Apagar seus ardores e tormentos
Na vista do que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela nave
Que queima corações e pensamentos.


(Luís de Camões)

Soneto - Álvares de Azevedo


Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era a mais bela! Seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti as noites eu velei chorando,
Por ti nos sonhos morrerei sorrindo!


(Álvares de Azevedo )

Caso - Bruna Lombardi


Pode ser mais um capricho
pode ser uma paixão
pode ser coisa de bicho
pode não

pode ser já por destino
pelos astros, pelos signos
por uma marca, uma estrela
talvez já tivesse escrito
na palma da minha mão

talvez não

talvez até nem fique
nem signifique nada
nem me arranhe o coração
pode ser só uma cisma
pode estar só de passagem

ou não.


( Bruna Lombardi)


O caminho do silêncio - Gonçalves Ribeiro


Seu eu pudesse voltar sobre os meus passos,
eu seguiria
o caminho dos insensíveis.
Neste por onde ando,
há somente a companhia,
quase sempre,
do meu ressoar dos meus passos.

É um caminho solitário
este por onde ando.
São poucos os caminhantes
que andam por este caminho.
E quando nos alcançamos,
estamos tão distantes
na distância do silêncio
que não podemos dizer o que pensamos.

O caminho dos que sentem
é por demais solitário.
Na paisagem sem palavras,
apenas passos ressoam
na aridez do pensamento.
Mas talvez eu caminhasse
ainda mais solitário
se eu seguisse o outro caminho.
Já não sei que caminho eu seguiria
se eu pudesse voltar sore os meus passos.


(Gonçalves Ribeiro)

Tristeza - Fagundes Varela


Minh'alma é como o deserto
De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
como a rocha isolada,
Pelas espumas banhada,
— Dos mares na solidão. —

Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!

Roem-me atrozes idéias,
A febre me queima as veias;
A vertigem me tortura!...
Oh! por Deus! quero dormir,
Deixem-me os braços abrir
Ao sono da sepultura!

Despem-se as matas frondosas,
Caem as flores mimosas
Da morte na palidez,
Tudo, tudo vai passando...
Mas eu pergunto chorando:
— Quando virá minha vez?

Vem, ó virgem descorada,
Com a fronte pálida ornada

De cipreste funerário,
Vem! oh! quero nos meus braços
Cerrar-te em meigos abraços
Sobre o leito mortuário!

Vem, ó morte! a turba imunda
Em sua miséria profunda
Te odeia, te calunia...
— Pobre noiva tão formosa
Que nos espera amorosa
No termo da romaria.

Quero morrer, que este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel,
Porque meu seio gastou-se,
Meu talento evaporou-se
Dos martírios ao tropel!

Quero morrer: não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançar ao chão,
Do pó desprender-me rindo
E as asas brancas abrindo
Lançar-me pela amplidão!

Oh! quantas louras crianças
Coroadas de esperanças
Descem do campo à friez!...
Os vivos vão repousando;
Mas eu pergunto chorando:
— Quando virá minha vez? —

Minh'alma é triste, pendida,
Como a palmeira batida
Pela fúria do tufão.
É como a praia que alveja;
Como a planta que viceja
Nos muros de uma prisão!


(Fagundes Varela)