Nós e natureza - Epitácio Mendes Silva


Cores de todas as manhãs,
manhãs de todas as cores.
Dia de todas as luzes,
luzes de todos os dias.
Noite de todas as luzes,
luzes de todas as noites. 
Gotas de orvalho das flores 
e flores com gotas de orvalho.
Pássaros que os dias festejam 
e dias que festejam os pássaros. 
Céu de todos os azuis
e azuis de todos os céus. 
Cristalinas águas das fontes 
e fontes de águas cristalinas. 
Mundo de todos os sons 
e sons de todos os mundos. 
Dizei-me oh, coisas divinais:
por que em tudo isso me reflito
e tudo me faz pensar em ti ?...


(Epitácio Mendes Silva)



Carolina — Machado de Assis


Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.


(Machado de Assis)


Deserto - Paulo de Toledo


minha sombra caminha
adiante de mim

sigo-a sequioso
com meu séquito de sonhos

lá atrás o sol
ao traduzir-me desola-se


(Paulo de Toledo)


Pantera - Carlos Newton Júnior


Jamais a vi verdadeira
— o hálito quente e o frio olhar —
para além das rijas barras
que mundo nenhum retém:

encontrei-a nas palavras
precisas, que são ferro e pedra,
sangue vivo, força oculta,
veludo quase matéria.

E eram tantas as panteras
nas diversas traduções
do mesmíssimo poema.

Em todas, o vulto negro
num silêncio ditirambo
com seus coturnos de seda.


(Carlos Newton Júnior)



Névoas - Fagundes Varela


Nas horas tardias que a noite desmaia
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz,

Eu vi entre os flocos de névoas imensas,
Que em grutas extensas se elevam no ar,
Um corpo de fada — sereno, dormindo,
Tranqüila sorrindo num brando sonhar.

Na forma de neve — puríssima e nua —
Um raio da lua de manso batia,
E assim reclinada no túrbido leito
Seu pálido peito de amores tremia.

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,
Das verdes, cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste tão bela dormindo,
E dormes, sorrindo, das nuvens no véu?

O orvalho das noites congela-te a fronte,
As orlas do monte se escondem nas brumas,
E queda repousas num mar de neblina,
Qual pérola fina no leito de espumas!

Nas nuas espáduas, dos astros dormentes
— Tão frio — não sentes o pranto filtrar?
E as asas, de prata do gênio das noites
Em tíbios açoites a trança agitar?

Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!...
Os astros sem alma se cansam de olhar-te,
Nem podem amar-te, nem dizem paixão!

E as auras passavam — e as névoas tremiam
— E os gênios corriam — no espaço a cantar,
Mas ela dormia tão pura e divina
Qual pálida ondina nas águas do mar!

Imagem formosa das nuvens da Ilíria,
— Brilhante Valquíria — das brumas do Norte,
Não ouves ao menos do bardo os clamores,
Envolto em vapores — mais fria que a morte!

Oh! vem; vem, minh'alma! teu rosto gelado,
Teu seio molhado de orvalho brilhante,
Eu quero aquecê-los no peito incendido,
— Contar-te ao ouvido paixão delirante!...

Assim eu clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o gemido da onda na praia,
Na hora em que fogem as névoas sombrias
– Nas horas tardias que a noite desmaia.

E as brisas da aurora ligeiras corriam.
No leito batiam da fada divina...
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem,
E a pálida imagem desfez-se em — neblina!


(Fagundes Varela)

Ápice - Mário de Sá-Carneiro


O raio do sol da tarde  
Que uma janela perdida
Refletiu
Num instante indiferente — 
Arde, 
Numa lembrança esvaída, 
À minha memória de hoje 
Subitamente...

Seu efêmero arrepio 
Ziguezagueia, ondula, foge, 
Pela minha retentiva...
— E não poder adivinhar
Porque mistério se me evoca
Esta ideia fugitiva,
Tão débil que mal me toca!...

— Ah, não sei porquê, mas certamente 
Aquele raio cadente 
Alguma coisa foi na minha sorte 
Que a sua projeção atravessou... 

Tanto segredo no destino de uma vida...

É como a ideia de Norte,
Preconcebida, 
Que sempre me acompanhou...


(Mário de Sá-Carneiro )

Horas vivas - Machado de Assis


Noite: abrem-se as flores . . .
Que esplendores!
Cíntia sonha seus amores
Pelo céu.
Tênues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas,
Como um véu.

Mãos em mãos travadas,
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabelos,
Em novelos,
Puros, louros, belos,
A voar.

— "Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Ilusões!

— "Quantas, quantas vidas
Vão perdidas,
Pombas mal feridas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos,
Vêm os desenganos
Afinal.

— "Dorme: se os pesares
Repousares,
Vês? — por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos — horas vivas
De dormir. —"


(Machado de Assis)

Menina e moça - Machado de Assis


Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando-se talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! se nesse momento, alucinado, fores
Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!


(Machado de Assis)

Por Mim - Álvares de Azevedo


Teus negros olhos uma vez fitando 
Senti que luz mais branda os acendia, 
Pálida de langor, eu vi, te olhando, 
Mulher do meu amor, meu serafim, 
Esse amor que em teus olhos refletia... 
Talvez! - era por mim? 

Pendeste, suspirando, a face pura, 
Morreu nos lábios teus um ai perdido... 
Tão ébrio de paixão e de ventura! 
Mulher de meu amor, meu serafim, 
Por quem era o suspiro amortecido? 
Suspiravas por mim?...

Mas... eu sei!... ai de mim? Eu vi na dança 
Um olhar que em teus olhos se fitava... 
Ouvi outro suspiro... d´esperança! 
Mulher do meu amor, meu serafim, 
Teu olhar, teu suspiro que matava... 
Oh! não eram por mim.


(Álvares de Azevedo)

O fogo que na branda cera ardia - Luís de Camões


O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
Apagar seus ardores e tormentos
Na vista do que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela nave
Que queima corações e pensamentos.


(Luís de Camões)

Soneto - Álvares de Azevedo


Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era a mais bela! Seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti as noites eu velei chorando,
Por ti nos sonhos morrerei sorrindo!


(Álvares de Azevedo )

Caso - Bruna Lombardi


Pode ser mais um capricho
pode ser uma paixão
pode ser coisa de bicho
pode não

pode ser já por destino
pelos astros, pelos signos
por uma marca, uma estrela
talvez já tivesse escrito
na palma da minha mão

talvez não

talvez até nem fique
nem signifique nada
nem me arranhe o coração
pode ser só uma cisma
pode estar só de passagem

ou não.


( Bruna Lombardi)


O caminho do silêncio - Gonçalves Ribeiro


Seu eu pudesse voltar sobre os meus passos,
eu seguiria
o caminho dos insensíveis.
Neste por onde ando,
há somente a companhia,
quase sempre,
do meu ressoar dos meus passos.

É um caminho solitário
este por onde ando.
São poucos os caminhantes
que andam por este caminho.
E quando nos alcançamos,
estamos tão distantes
na distância do silêncio
que não podemos dizer o que pensamos.

O caminho dos que sentem
é por demais solitário.
Na paisagem sem palavras,
apenas passos ressoam
na aridez do pensamento.
Mas talvez eu caminhasse
ainda mais solitário
se eu seguisse o outro caminho.
Já não sei que caminho eu seguiria
se eu pudesse voltar sore os meus passos.


(Gonçalves Ribeiro)

Tristeza - Fagundes Varela


Minh'alma é como o deserto
De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
como a rocha isolada,
Pelas espumas banhada,
— Dos mares na solidão. —

Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!

Roem-me atrozes idéias,
A febre me queima as veias;
A vertigem me tortura!...
Oh! por Deus! quero dormir,
Deixem-me os braços abrir
Ao sono da sepultura!

Despem-se as matas frondosas,
Caem as flores mimosas
Da morte na palidez,
Tudo, tudo vai passando...
Mas eu pergunto chorando:
— Quando virá minha vez?

Vem, ó virgem descorada,
Com a fronte pálida ornada

De cipreste funerário,
Vem! oh! quero nos meus braços
Cerrar-te em meigos abraços
Sobre o leito mortuário!

Vem, ó morte! a turba imunda
Em sua miséria profunda
Te odeia, te calunia...
— Pobre noiva tão formosa
Que nos espera amorosa
No termo da romaria.

Quero morrer, que este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel,
Porque meu seio gastou-se,
Meu talento evaporou-se
Dos martírios ao tropel!

Quero morrer: não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançar ao chão,
Do pó desprender-me rindo
E as asas brancas abrindo
Lançar-me pela amplidão!

Oh! quantas louras crianças
Coroadas de esperanças
Descem do campo à friez!...
Os vivos vão repousando;
Mas eu pergunto chorando:
— Quando virá minha vez? —

Minh'alma é triste, pendida,
Como a palmeira batida
Pela fúria do tufão.
É como a praia que alveja;
Como a planta que viceja
Nos muros de uma prisão!


(Fagundes Varela)