Dispersão - Mário de Sá Carneiro


Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto 
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus, 
Mas fechou-as saciada 
Ao ver que ganhava os céus.

 Como se chora um amante,
 Assim me choro a mim mesmo:
 Eu fui amante inconstante 
 Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro 
Nem as linhas que protejo: 
Se me olho a um espelho, erro - 
Não me acho no que projeto. 

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada! 
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim. 

Não perdi a minha alma, 
Fiquei com ela, perdida. 
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo 
Uma gentil companheira 
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo 

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido 
Que vem na tarde doirada. 

(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte - 
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte, 
Numa grande capital. 

Vejo o meu último dia 
Pintado em rolos de fumo, 
E todo azul-de-agonia 
Em sombra e além me sumo. 

Ternura feita saudade, 
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade 
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas 
Que eram feitas pra se dar... 
Ninguém mas quis apertar... 
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal... 
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo; 
Eu fui alguém que passou. 
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal. 

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida 
Eu sigo-a, mas permaneço...

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba.


(Mário de Sá Carneiro)


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